A SAGRADA ESCRITURA COMO FONTE DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
Waldeylson Silva Marques¹
Embora a dimensão social seja um constitutivo da fé cristã e da própria moralidade, não um apêndice, mas algo intrínseco a ela, ainda há um profundo desconhecimento de qual é a posição da Igreja ou seu papel face aos grandes problemas sociais ou ao que chamamos, em termos morais, questão social que se apresentam como dilemas humanos. Nesse sentindo, não falta quem queira resumir a Igreja, unicamente, a uma dimensão espiritual, ocupando-se desta realidade sem nenhum compromisso com o homem concreto e histórico, exposto às contradições sócio-políticas do seu tempo. Por isso, fruto de uma reflexão acurada, a Igreja nos oferece a Doutrina Social a qual muitos cristãos católicos desconhecem o seu rico tesouro.
A natureza do homem (entende-se aqui como gênero humano) é uma integralidade, não há divisão, do ponto de vista da antropologia cristã, entre o espirito é a matéria que esta em contato com os meios de vida, ambas em total equilíbrio, de modo que tudo que diz respeito ao homem fala ao coração de Deus e, consequentemente, ressoa no coração da Igreja. Destarte, a missão da Igreja não se define só e somete só por salvar almas, mas a pessoa. Por pessoa entendemos um conjunto de aspectos como vontade, consciência e determinação, situadas em uma concretude histórica e existencial que, por sua vez, correspondem aos modelos políticos e sociais, por vezes, injustos. Levando em conta a necessidade de esclarecer a natureza da Doutrina Social da Igreja, iremos refletir, a seguir, como ela brota da própria revelação divina.
Antes de tudo, é preciso entender que a Doutrina Social da Igreja é um saber iluminado pela fé. Desse modo, toda a sua formulação parte da revelação divina, da tradição da Igreja e dos ensinamentos papais. A esse respeito nos afirma o compêndio da doutrina social da Igreja: “A doutrina social tem o seu fundamento essencial na Revelação bíblica e na Tradição da Igreja. Antes e acima de tudo está o projeto de Deus sobre a criação e, em particular, sobre a vida e o destino do homem, chamado à comunhão trinitária (CDSI, n° 74)”.
A sagada escritura, é ponto de arranque de toda ética cristã, constitui também a primeira orientação da Doutrina Social da Igreja. O Antigo Testamento narra a história do povo de Israel, baseada em uma história de fé e de um Deus relacional que faz de Israel um povo eleito. O episodio do êxodo nos abre a ideia de um Deus libertador que age na história e intervém de maneira objetiva em um sistema politico opressor.
Ao lermos o dialogo entre Moisés e YAHWEH na sarça ardente ( Ex 3,7-8) percebemos que a iniciativa de intervenção no regime político em que se encontrava o povo, não nasce do puro desejo de Moisés, mas do próprio Deus que por primeiro é o agente da libertação: “desci afim de libertá-los”. A observância da aliança, constantemente advertida pelos profetas, por parte do povo é baseada em dois princípios fundamentais: a fidelidade à YAHWEH e a relação com o próximo, especificamente no que conhecemos como direito do pobre: os órfãos, as viúvas e o estrangeiro.
A mensagem dos profetas torna-se mais incisiva na medida em que no meio do povo eleito volta a surgir a exploração do irmão pelo irmão. E pretende-se dissimular este fato pela aparência de um culto fiel a Deus. Portanto, o culto ao Deus verdadeiro, está ligado a denunciar a prática da injustiça acobertada sob o culto. A razão, de caráter teológico, é a seguinte: já não é o Deus da aliança que se adora com as aparências cultuais, mas, se o culto a Deus não vier acompanhado pela justiça aos irmãos de fato se está adorando um ídolo. Por isso, “fazer justiça é conhecer a Deus” (Jr 22,13-16).
Em Jesus Cristo acontece a plenitude do encontro de Deus com o homem, ele reconcilia todo o gênero humano, eleva pela sua encarnação a condição humana da vida, assim sendo, quis salvar “todo homem e o homem todo (PP, n°14)”, pois o “mistério de Cristo ilumina o mistério do homem (CDSI, n°75)”. Desse modo, podemos concluir que a dignidade do homem ganha novo sentindo a partir do evento Cristo. É no anúncio do evangelho, tendo o Reino como centralidade desse anúncio, que o novo testamento desdobra-se em uma Doutrina Social apurada e coesa. É muito preciso o que nos diz o papa Francisco ao afirma aos jovens no DOCAT. Referindo-se a Doutrina Social da Igreja, ele diz: “Em rigor, não se pode dizer que a Doutrina Social tem a sua origem neste ou naquele papa ou neste ou naquele pensador. Ela brota do coração do Evangelho. Ela brota do próprio Jesus. Ele é em pessoa a Doutrina Social de Deus” (Docat, 2016, p. 12).
O Evangelho revela a opção de Jesus pelos pobres, proclama a pobreza como uma bem-aventurança. Lc 16, com a riqueza de suas parábolas, nos diz que os pobres são os cidadãos do Reino de Deus; e basta não haver se convertido a ele, como acontece na parábola do leproso Lázaro, para ficar excluído do Reino. O evangelho dá aos pobres uma categoria nova. Não é mais um castigado por Deus, mas vai muito além: o próprio filho de Deus, verbo feito homem, se identifica com os pobres (Mt 25, 40). O evangelho, embora não seja um tratado político, existe no seu núcleo uma força ética e moral que interpela o homem a encontrar o homem, a orientar a sua vida para uma relação justa e fraterna.
Portanto, a Doutrina Social da Igreja faz parte do magistério e da evangelização da Igreja, não é algo estranho à sua natureza. Ela por si só constitui-se como um instrumento de evangelização, um rico tesouro ao qual deveríamos todos ter acesso, pois ela responde às angústias e inquietações dos homens de hoje. “Com a sua Doutrina Social, a Igreja assume a tarefa de anúncio que o Senhor lhe confiou. Ela atualiza no curso da história a mensagem de libertação e de redenção de Cristo, o Evangelho do Reino” (CDSI, n° 63). Há uma dimensão prática que brota da própria Doutrina Social, que interpela e ilumina a prática dos homens no mundo da politica, não é só um conjunto de princípios e postulados, mas uma força ética para a vida e que faz nascer, do próprio conteúdo doutrinal, indicativos para a ação.
- Seminarista diocesano da Diocese de Pinheiro, graduando em teologia e cursando especialização em Doutrina Social da Igreja. Atualmente atua como assessor diocesano da Pastoral da Juventude.
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